Resumo
O presente artigo analisa a embriaguez habitual no ambiente de trabalho e sua repercussão na esfera trabalhista, especialmente quanto à possibilidade de dispensa por justa causa prevista no art. 482, f, da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Embora a legislação considere a conduta como falta grave, a Organização Mundial da Saúde (OMS), reconhece o alcoolismo como doença crônica, classificada no Código Internacional de Doenças (CID). A partir da análise doutrinária, jurisprudencial e normativa, discute-se a tensão entre a sanção punitiva e a necessidade de tratamento do empregado.
Conclui-se que a dispensa discriminatória viola princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da função social do contrato, devendo prevalecer medidas de reabilitação e reinserção no mercado do trabalho.
Palavras-chave: Direito do Trabalho; Embriaguez habitual; Alcoolismo; Justa causa; Saúde do trabalhador.
Introdução
A justa causa é a penalidade máxima aplicada ao trabalhador, rompendo o vínculo contratual em razão de falta grave. A CLT, em seu art. 482, alínea f, prevê a embriaguez habitual ou em serviço como hipótese ensejadora da dispensa.
Entretanto, a evolução científica e social evidencia que o alcoolismo não se resume a um desvio de conduta, mas a uma patologia reconhecida pela OMS e pelo CID, exigindo abordagem médica e psicológica. Nesse contexto, surge a problemática: é legítima a aplicação da justa causa a empregado diagnosticado com alcoolismo, ou deve prevalecer a necessidade de tratamento?
1. A justa causa no Direito do Trabalho
A justa causa caracteriza-se pela prática de ato grave que rompe a fidúcia essencial ao contrato de trabalho. Seus requisitos incluem gravidade, imediatidade, nexo causal, proporcionalidade e enquadramento legal. Os efeitos são severos, restringindo as verbas rescisórias a saldo de salário e férias vencidas.
Doutrinadores como Alice Monteiro de Barros e Sérgio Pinto Martins destacam a natureza excepcional da justa causa, devendo ser aplicada somente quando comprovados todos os elementos configuradores.
A justa causa representa a penalidade mais severa aplicável ao empregado, ensejando a rescisão contratual imediata em razão de falta grave que torne insustentável a continuidade da relação de emprego. Está prevista no art. 482 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e exige a comprovação de requisitos como gravidade, imediatidade, nexo causal, proporcionalidade e tipicidade legal.
Por se tratar de medida extrema, a justa causa deve ser aplicada somente quando restar demonstrado que a conduta do empregado comprometeu de forma irreversível a confiança essencial ao vínculo empregatício. Entre as hipóteses legais estão atos de improbidade, incontinência de conduta, desídia, insubordinação, abandono de emprego, violação de segredo da empresa e embriaguez habitual ou em serviço.
Portanto, a justa causa é um instrumento de preservação da disciplina contratual, mas sua utilização requer cautela, sob pena de violar direitos fundamentais do trabalhador e gerar responsabilidade indenizatória ao empregado.
2. A embriaguez habitual como falta grave e como doença
Tradicionalmente, a CLT considera a embriaguez habitual causa suficiente para rescisão contratual. Contudo, a OMS reconhece o alcoolismo como síndrome de dependência, doença que compromete as condições fisiológicas e psicológicas do indivíduo, muitas vezes tornando-o incapaz de controlar seu comportamento.
Assim, a concepção moderna desloca o enfoque da punição para o cuidado médico, reconhecendo que o trabalhador é vítima de uma condição de saúde que demanda tratamento, e não mera repressão disciplinar.
2.1. Embriaguez como falta grave
A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), em seu art. 482, alínea f, prevê a embriaguez habitual ou em serviço como causa de rescisão do contrato de trabalho por justa causa.
O fundamento é que o estado de embriaguez compromete a segurança, a disciplina e a confiança no ambiente laboral.
Juridicamente, basta a comprovação de que o empregado se apresentou embriagado durante a jornada ou mantém hábito constante de beber, tornando-se inapto para o serviço.
Trata-se, portanto, de conduta considerada falta grave, pois rompe a fidúcia essencial ao contrato.
2.2. Embriaguez como doença
Por outro lado, a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Classificação Internacional de Doenças (CID) reconhecem o alcoolismo como síndrome de dependência, isto é, uma doença crônica que afeta as condições físicas, psíquicas e sociais do indivíduo.
Sob esse prisma, o trabalhador não age por mera indisciplina, mas por compulsão decorrente da dependência química.
A jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho (TST) tem relativizado a aplicação da justa causa nesses casos, entendendo que a dispensa pode ser discriminatória (Súmula 443 do TST), cabendo reintegração ou indenização.
Nessa visão, a resposta adequada não seria a punição, mas a adoção de medidas de reabilitação e tratamento, respeitando os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da função social do contrato.
3. A função social do contrato e a dignidade da pessoa humana
A Constituição Federal de 1988 erige a dignidade da pessoa humana como fundamento da República (art. 1º, III) e confere proteção especial ao trabalho (art. 7º). A dispensa punitiva de empregado doente, sem observância da função social do contrato e da solidariedade social, afronta tais valores constitucionais.
Assim, diante da vulnerabilidade do alcoolismo, o empregador deve buscar alternativas de reintegração e apoio, em consonância com a função social da empresa e os princípios da proteção e continuidade da relação de emprego.
A dispensa punitiva de empregado acometido pelo alcoolismo, sem a devida consideração de sua condição clínica, representa afronta direta a tais valores constitucionais. Neste toar, o alcoolismo é reconhecido pela Organização Mundial da Saúde como doença, enquadrando o trabalhador em condição de vulnerabilidade, requerendo do empregador não apenas tolerância, mas também a adoção de medidas efetivas de apoio, como encaminhamento para tratamento e preservação do vínculo laboral sempre que possível.
Assim, a rescisão contratual por justa causa em tal hipótese, não se coaduna com os princípios da dignidade da pessoa humana, da função social da empresa e da continuidade da relação de emprego, devendo prevalecer a solução que favoreça a reabilitação do trabalhador e a sua reinserção social.
Conclusão
A embriaguez habitual, embora prevista legalmente como justa causa, deve ser analisada à luz da evolução científica, social e constitucional. O alcoolismo, reconhecido como doença crônica, não pode ser equiparado a simples desvio disciplinar ou conduta que enseje uma justa causa.
A aplicação cega da justa causa, nesses casos, agrava a exclusão social e compromete a dignidade do trabalhador. O entendimento jurisprudencial mais recente aponta para a substituição da sanção por políticas de tratamento e reintegração, reafirmando o caráter protetivo do Direito do Trabalho.
Portanto, a solução jurídica adequada não é a punição sumária, mas o reconhecimento da doença e a adoção de medidas que assegurem o tratamento do empregado, em respeito à dignidade da pessoa humana e à função social do trabalho.
Referências
BARROS, Alice Monteiro de. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2011. MARTINS, Sérgio Pinto. Direito do Trabalho. São Paulo: Atlas, 2021.
LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: Saraiva, 2020. Organização Mundial da Saúde (OMS). Classificação Internacional de Doenças – CID-10. Tribunal Superior do Trabalho (TST). Súmula 443.
VAISSMAN, M. Alcoolismo no trabalho. Rio de Janeiro: Fiocruz, 200