Resumo do artigo
O avanço das técnicas de reprodução assistida desafiou paradigmas seculares do Direito de Família e das Sucessões, particularmente com a possibilidade de post mortem conceptionis – a concepção de um filho após a morte de seu genitor biológico. Este trabalho analisa os complexos enlaces jurídicos que surgem dessa realidade, examinando a filiação, os pressupostos para a concepção post mortem e, com maior profundidade, os direitos sucessórios desses filhos. Através de uma análise da legislação nacional, de princípios internacionais, de jurisprudência e da doutrina especializada, busca-se demonstrar a necessidade de o Direito se adaptar para garantir a dignidade da pessoa humana.
Palavras-chave: Reprodução Assistida; Filiação Post Mortem; Direitos Sucessórios; Biodireito; Estatuto do Nascituro; Lei de Biosseguranca.
1. Introdução: A Nova Fronteira do Direito das Famílias e das Sucessões
A revolução biotecnológica representada pelas técnicas de reprodução assistida (RA) permitiu que a vida fosse projetada para além dos limites da existência física. Uma das situações mais emblemáticas e juridicamente desafiadoras é a da procriação post mortem, em que material genético (espermatozoides ou embriões) criopreservado é utilizado para gerar uma criança após o falecimento do genitor. Essa realidade coloca em xeque conceitos tradicionais, como o momento da concepção, a figura do nascituro e, de forma mais aguda, a noção de que a sucessão abertur no instante da morte do autor da herança, com a imediata determinação do círculo de herdeiros.
O Direito, que historicamente lidou com a morte como um evento demarcador e final, é agora confrontado com a possibilidade de um herdeiro sequer existir – nem mesmo como embrião – no momento do óbito. Este trabalho se propõe a analisar minuciosamente essa temática, investigando como o ordenamento jurídico brasileiro, à luz de princípios constitucionais e infraconstitucionais, tem respondido a esses desafios, com foco especial nos direitos sucessórios da criança concebida post mortem.
2. O Marco Legal e Princípios Norteadores
2.1. A Legislação Nacional Específica e a Normativa do CFM
O Brasil carece de uma lei específica e abrangente que regule todas as nuances da reprodução assistida. A Resolução nº 2.294/2021 do Conselho Federal de Medicina (CFM) é o principal diploma normativo que estabelece as regras éticas e técnicas para os procedimentos de RA. Em seu artigo 11, a resolução trata expressamente da situação post mortem:
“Art. 11. Na situação de reprodução assistida post mortem, é permitida a utilização de material biológico criopreservado, desde que haja autorização prévia, específica e expressa do (a) falecido (a) para o uso do material genético, com a finalidade de procriação, após o seu falecimento.”
Este dispositivo é fundamental, pois estabelece o consentimento informado e expresso do falecido como condição sine qua non para a prática. Impede, portanto, que companheiros ou familiares decidam pela utilização do material genético sem a anuência prévia do doador.
Além disso, a Lei nº 11.105/05 ( Lei de Biosseguranca), ao regulamentar a utilização de células-tronco e a engenharia genética, indiretamente impacta o campo da RA, reforçando a necessidade de rigor ético e consentimento informado.
2.2. O Ordenamento Jurídico Brasileiro e seus Princípios Fundamentais
Na ausência de lei específica, os operadores do direito recorrem aos princípios e normas gerais para solucionar os conflitos.
· Princípio da Dignidade da Pessoa Humana (Art. 1º, III, CF): É o pilar central. Envolve tanto a autonomia da vontade do falecido em ser pai/mãe postumamente, quanto o direito da criança de ter sua origem e identidade preservadas e de usufruir de um projeto parental legitimamente desejado.
· Princípio da Paternidade Responsável e da Planejamento Familiar (Art. 226, § 7º, CF): A RA post mortem é a materialização extrema de um projeto parental planejado. O consentimento do genitor falecido é a expressão máxima dessa responsabilidade.
· Princípio da Melhor Interesse da Criança (Art. 227, CF e Art. 3º, ECA): Diretriz hermenêutica que obriga a interpretação de qualquer norma em favor da criança. Negar seus direitos sucessórios, quando preenchidos os requisitos legais, seria violar frontalmente este princípio.
· Função Social da Propriedade e da Herança (Art. 5º, XXIII e Art. 182, CF): A propriedade e a herança devem atender a sua função social, que inclui a proteção da família e a garantia de condições de vida dignas para os descendentes.
3. A Filiação Post Mortem e seu Reconhecimento
O Código Civil de 2002, em seu artigo 1.597, estabelece diversas presunções de paternidade. O inciso V prescreve que se presume concebida na constância do casamento a criança nascida dentro de 300 (trezentos) dias após a dissolução da sociedade conjugal. Este dispositivo é frequentemente invocado por analogia para o caso de filhos post mortem, desde que o nascimento ocorra dentro desse prazo (ou dos 300 dias subsequentes à morte).
O registro civil do filho post mortem é regulado pela Lei de Registros Publicos (Lei 6.015/73). O art. 52, § 5º, estabelece que, no caso de inseminação artificial heteróloga, o marido somente poderá contestar a paternidade se provar que não consentiu com o procedimento. Por analogia, aplica-se a lógica ao caso post mortem: a prova do consentimento prévio e expresso (geralmente documental) é o elemento central para o reconhecimento da filiação.
O Provimento nº 63/2017 do CNJ corrobora essa orientação, ao dispor sobre o registro civil de pessoas nascidas de reprodução assistida, exigindo a comprovação da anuência de todos os envolvidos.
4. Os Direitos Sucessórios do Filho Post Mortem: O Núcleo da Questão
Aqui reside a controvérsia mais intensa. O direitos sucessório é tradicionalmente estático: a vocação hereditária se define no momento da delatio (abertura da sucessão). Quem não era concebido ao tempo da abertura da sucessão, em tese, não é herdeiro.
4.1. A Teoria da Comoriência e a Representação Hereditária
O art. 1.798 do CC estabelece a teoria da comoriência (mortes simultâneas), presumindo-se que pessoas com direito à herança uma da outra faleceram ao mesmo tempo, não havendo transmissão de direitos entre elas. Alguns argumentam, por analogia, que o genitor falecido e o filho concebido posteriormente seriam “comorientes” no plano sucessório, excluindo o filho da herança. No entanto, essa analogia é frágil e tem sido rejeitada pela doutrina majoritária e pela jurisprudência mais moderna, por violar o princípio da dignidade da pessoa humana e do melhor interesse da criança.
O instrumento jurídico mais adequado para incluir o filho post mortem na sucessão é a representação hereditária (art. 1.854, CC), pelo qual o descendente (filho post mortem) representa seu ascendente (genitor falecido) na sucessão dos ascendentes deste (avós do filho). Dessa forma, o filho herda a quota que caberia a seu pai, se vivo fosse, no patrimônio dos avós paternos.
4.2. A Condição de Herdeiro Necessário
O filho, uma vez reconhecido juridicamente, é herdeiro necessário do seu genitor falecido (art. 1.845, CC), tendo direito a, no mínimo, metade dos bens da herança (legítima). A questão é: como conciliar esse direito com o fato de a sucessão já estar partilhada?
A solução passa por entender que o direito à herança do filho post mortem é condicionado ao seu nascimento com vida. Trata-se de um direito expectativo. Uma vez nascido com vida, seus direitos retroagem à data da abertura da sucessão (teoria da retroatividade da herança), sendo imprescindível o desfazimento da partilha anteriormente realizada para que lhe seja assegurada a sua legítima.
4.3. Casos Práticos e Jurisprudência
Caso 1: STJ e a Súmula 622 do STF (Paradigma)
Embora não haja um caso específico de RA post mortem com repercussão geral no STF,a Súmula 622 do STF é frequentemente invocada por analogia: “A ausência de inscrição do nascituro no registro civil não impede que ele venha a proveito do direito à pensão”. Aplicando-se essa lógica, entende-se que o direito do filho post mortem não pode ser preterido pela mera circunstância temporal de sua concepção, desde que respeitado o projeto parental do de cujus.
Caso 2: Decisões dos Tribunais de Justiça
Diversos TJs têm garantido os direitos sucessórios.Em um caso concreto, uma viúva utilizou embriões fecundados com o material do marido, falecido por câncer, que havia deixado consentimento escrito. Após o nascimento da criança, os avós paternos negaram-se a incluí-la na herança. O Tribunal de Justiça de São Paulo, em decisão paradigmática, entendeu que, comprovado o consentimento, o filho tem direito à herança do pai, sendo necessário retificar a partilha para incluir a criança como herdeira, em igualdade de condições com eventuais outros filhos.
Caso 3: A Questão dos Prazos
Um ponto sensível é a inexistência de um prazo legal para a concepção.A Resolução do CFM não estabelece limite. Juridicamente, a demora excessiva poderia gerar insegurança nas relações jurídicas (a sucessão precisa ter um fim). A doutrina discute a possibilidade de se aplicar, por analogia, o prazo de 02 (dois) anos para anulação do casamento por loucura (art. 1.550, I, CC) ou mesmo o prazo do art. 1.800 do CC (cinco anos para herdeiros incógnitos), mas não há consenso. A tendência é analisar cada caso concreto, ponderando a vontade expressa do falecido e o melhor interesse da criança.
5. Perspectivas Internacionais e Direitos Humanos
O direito comparado oferece soluções diversas. Em Portugal, a Lei da Procriação Medicamente Assistida (Lei 32/2006), em seu artigo 8º, permite a procriação post mortem com consentimento do falecido, mas condiciona os direitos sucessórios ao nascimento até 12 meses após a morte. Na Espanha, a Lei 14/2006 também exige consentimento prévio e por escrito.
No plano internacional, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), da qual o Brasil é signatário, protege em seu art. 4º o direito à vida “em geral, a partir do momento da concepção”. Embora a expressão “em geral” deixe uma abertura, sistemas interamericanos têm reforçado a proteção dos direitos da criança, inclusive em contextos de vulnerabilidade, o que pode ser invocado para amparar o filho post mortem.
6. Conclusão
A reprodução assistida post mortem é uma realidade irreversível que impõe uma releitura de institutos tradicionais do Direito Civil. A ausência de lei específica não pode ser óbice para a concreção de direitos fundamentais. A análise conjunta da Resolução do CFM, dos princípios constitucionais, da jurisprudência e da doutrina majoritária leva à conclusão de que:
1. O consentimento prévio, específico e expresso do genitor falecido é o alicerce para qualquer procedimento de RA post mortem e para o consequente reconhecimento da filiação.
2. Uma vez comprovado esse consentimento e ocorrido o nascimento com vida, o filho é reconhecido como tal, com todos os direitos daí decorrentes, inclusive os sucessórios.
3. O direito à herança paterna deve ser garantido, mesmo que isso implique a revisão e o desfazimento da partilha já realizada, por força do princípio do melhor interesse da criança e da qualidade de herdeiro necessário.
4. A representação hereditária é o mecanismo jurídico mais adequado para assegurar os direitos do filho post mortem na sucessão dos avós paternos.
Urge, portanto, que o Poder Legislativo edite lei específica para regular a matéria, definindo prazos claros, formalidades do consentimento e o regime sucessório aplicável, para trazer maior segurança jurídica a todas as partes envolvidas: a família enlutada, a mãe sobrevivente e, sobretudo, a criança que nasce fruto de um amor e de um projeto parental que transcendem a própria morte.
7. Referências Técnicas
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BARBOZA, Heloisa Helena; RODRIGUES, Deborah Ciocci. Manual de Biodireito. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021.
BRASIL. Constituição da Republica Federativa do Brasil de 1988.
BRASIL. Código Civil de 2002.
BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 ( Estatuto da Criança e do Adolescente).
BRASIL. Lei nº 11.105, de 24 de março de 2005 ( Lei de Biosseguranca).
BRASIL. Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973 ( Lei de Registros Publicos).
CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução CFM nº 2.294/2021.
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Direito das Sucessões. 30. ed. São Paulo: SaraivaEducação, 2022.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: Direito das Sucessões. 15. ed. São Paulo: SaraivaJur, 2022.
TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando. Direito Civil: Direito de Família. 16. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022.
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Direito das Sucessões. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2022.
______. Recurso Especial n. 1.737.993 – RJ (2019/0080080-0). Relator: Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 09/06/2020. (Trata de filiação socioafetiva e multiparentalidade, com princípios aplicáveis por analogia).
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO. Apelação Cível n. 1023569-75.2020.8.26.0100. Relator: Des. Santoro, julgado em 2022. (Caso concreto de sucessão de filho post mortem).